domingo, 31 de julho de 2011

frase

Só eu sei que já cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.

sábado, 30 de julho de 2011

trecho

Lá está ela, mais uma vez. Não sei, não vou saber, não dá pra entender como ela não se cansa disso. Sabe que tudo acontece como um jogo, se é de azar ou de sorte, não dá pra prever. Ou melhor, até se pode prever, mas ela dispensa. [...] E se ela se afogar, se recupera. [...] E assim, aos poucos, ela se esquece dos socos, pontapés, golpes baixos que a vida lhe deu, lhe dará. A moça – que não era Capitu, mas também tem olhos de ressaca – levanta e segue em frente.

trecho

Eu sei, eu sei, o eterno clichê “isso passa”. Passa sim e, quando passar, algo muito mais triste vai acontecer: eu não vou mais te amar.
É triste saber que um dia vou ver você passar e não sentir cada milímetro do meu corpo arder e enjoar. É triste saber que um dia vou ouvir sua voz ou olhar seu rosto e o resto do mundo não vai desaparecer. O fim do amor é ainda mais triste do que o nosso fim.
Meu amor está cansado, surrado, ele quer me deixar para renascer depois, lindo e puro, em outro canto, mas eu não quero outro canto, eu quero insistir no nosso canto.
Eu me agarro à beiradinha do meu amor, eu imploro pra que ele fique, ainda que doa mais do que cabe em mim, eu imploro pra que pelo menos esse amor que eu sinto por você não me deixe, pelo menos ele, ainda que insuportável, não desista
.

frase do dia

Eu passo quieta por você, você passa quieto por mim, e eu ainda escuto o barulho que a gente faz. .

terça-feira, 26 de julho de 2011

frase do dia

E te abraçar até sentir o mundo girar apenas para nós ..

trecho

Foi e foi e foi. Aquilo que dizem sobre o que é pra ser. Simplesmente fomos e continuamos sendo. Vejo você me olhar sabendo que, inexplicavelmente, justo eu, te aceito seja lá como for. Você, idem. Não fomos fáceis a nada e nem a ninguém, mas cá estamos.

isso não é amor menina



Apesar da gente nunca ter
namorado ou casado ou feito planos, hoje completamos oito anos juntos. Se nosso
primeiro encontro não tivesse se dado numa data tão conhecida, jamais
saberíamos. Nunca contamos o tempo ou demos nomes aos nossos sentimentos de
compromisso. Simplesmente tudo se desenrolou sem drama ou pedido ou
conjecturações ou vingança. Foi e foi e foi. Aquilo que dizem sobre o que é pra
ser. Simplesmente fomos e continuamos sendo.
Quem diria que um dia eu seria
tão feliz a ponto de não contar ou reduzir sensações a palavras? Mas é isso, sou
feliz com você. Sem esforço e mesmo sendo, muitas vezes, bem infeliz. Sou feliz.
Não faz muito tempo nos mudamos pra essa casa maior. A cama gigante que
sempre cabe mais gente quando a noite dá medo no vizinho de quarto. O jardim, o
quartinho dos brinquedos e livros, a janela do lavabo que tem a melhor vista da
casa. As figurinhas coladas perto do rodapé parecendo um cineminha de forminhas,
os coquinhos destruídos na garagem, a casinha termômetro que você me deu porque
eu disse que lembrava meu avô.
Daqui, deitada nesse ângulo quase indecente,
vejo você, safado, acender seu cigarro de domingo e me olhar sabendo que,
inexplicavelmente, justo eu, te aceito seja lá como for. Você, idem. Não fomos
fáceis a nada e nem a ninguém, mas cá estamos. Sem a comemoração deslumbrada e
terrivelmente curta do amor e por isso mesmo podendo celebrar o pouco cabível de
cada instante.
E por isso mesmo, vai ver, amando. Sabemos tanto que é amor
que nem parece aquele coisa que dizem: amor. A-m-o-r. Ah, deve ser. Mas não o
que um dia quisemos tanto e por isso mesmo afastamos, mas o que podemos e por
isso mesmo nos soa tão possível. Sei que parece óbvio, mas só agora.
E eu
continuo nessa pose quase indecente, retardando a vontade do xixi e do banho,
olhando você e querendo apenas um presente pra comemorar nossos oito anos
juntos. Olhando seu ombro que eu curto tanto desde o primeiro segundo. Seu pé
direito retesado e tão diferente do esquerdo sempre relaxadão. A sua mania de
entregar um pouco mais de "cofrinho" do que permitido, quando concentrado e um
pouco curvado.
Vai começar a chover e eu posso chorar. Hoje completamos oito
anos juntos e eu só queria um presente. Voltar no tempo, me encontrar e
chacoalhar meu corpo. Aquela época em que eu já estava quase cínica mas ainda
acreditava em um relacionamento com todas as forças do mundo. Porque quanto mais
cinismo e cansaço, mais força fazemos e mais forte parece. Eu queria me
chacoalhar e dizer que ele existe, sim, o tal do amor, mas você, querida, não
sabe ainda nada disso. Isso que você acha que é amor, menina, não passa nem
perto.
Eu me faria uma visita naquele apartamentinho pequeno e cheio de
tentativas de charme e maturidade. E diria pra mim o que ninguém, sabe-se lá
porquê, foi capaz de me dizer numa época tão necessária e quase triste. Época de
tentar de tudo pra chegar perto do que, um dia, simplesmente acontece mesmo a
gente achando que só funciona para os disciplinados na cultura da imbecilidade.
Esse povo estranho que divide armário e sorriso de foto.
Eu diria: menina,
amar a dúvida, o silêncio, a ingratidão, o fim, o atraso, a invenção, a lacuna,
o pode ser, as hipóteses, a não resposta, a raiva, o absurdo, o não, a
impossibilidade, o depois que foi, o antes de chegar, o difícil, o pode não,
amar essas coisas, menina, é amar o mistério e não um homem.
Amar um homem
não é o telefone que não toca, é o telefone que toca e ele tá daquele jeito que
te irrita justamente porque está irritado com você e você desliga logo e ele
liga de novo e vocês morrem de rir. Ah, e aí vai dando certo. Foi e foi e foi e
cá estamos. Você apaga o cigarro de domingo, a luz e some. Eu escrevo esse texto
na mente, tomo banho e me chacoalho. Daqui a pouco a gente, sem se dar conta de
plurais e segredos, se encontra no corredor e decide o que faz do resto do
dia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

frase


Acredito que essa moça, no fundo gosta dessas coisas. De se jogar num rio onde ela não sabe se consegue nadar ..

frase do dia

Eu quero pouco e quero mais. Quero você. Quero eu. Quero domingos de manhã.
Quero cama desarrumada, lençol, café e travesseiro. Quero seu beijo. Quero seu
cheiro. Quero aquele olhar que não cansa, o desejo que escorre pela boca e o
minuto no segundo seguinte: nada é muito quando é demais.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

frase

E que no momento certo se reencontrem e que nada, nada seja por acaso.

frase do dia

Pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.

trecho

Que eu possa também abrir espaço pra cultivar a todo instante as sementes
do bem e da felicidade de quem não importa quem seja ou do mal que tenha feito
para mim. Que a vida me ensine a amar cada vez mais, de um jeito mais leve. Que
o respeito comigo mesma seja sempre obedecido com a paz de quem está se
encontrando e se conhecendo com um coração maior. Um encontro com a vontade de
paz e o desejo de viver.

trecho

Que eu possa também abrir espaço pra cultivar a todo instante as sementes
do bem e da felicidade de quem não importa quem seja ou do mal que tenha feito
para mim. Que a vida me ensine a amar cada vez mais, de um jeito mais leve. Que
o respeito comigo mesma seja sempre obedecido com a paz de quem está se
encontrando e se conhecendo com um coração maior. Um encontro com a vontade de
paz e o desejo de viver.

domingo, 17 de julho de 2011

frase

Ás vezes sinto muita saudade de você. Me dá notícias qualquer hora, de repente. Te gosto sempre.

frase do dia

S. O. L. T. E. I. R. O:
”Sociedade Organizada Livre de Traição e Erros, total Independência, sem Remorsos ou Obrigações”

sexta-feira, 15 de julho de 2011

frase do dia

Comece - ironicamente - seguindo o conselho de quem deixou de te amar. Cuide de você.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

frase do dia

Você me provoca achando que não há perigo. Sem conhecer a força da minha mordida, o tamanho dos caninos. Você me provoca sem esperar a picada.

domingo, 10 de julho de 2011

frase

Daqui a 50 anos eu ainda vou saber seu nome e vou me lembrar de todas as vezes que você me fez sorrir. Na minha memória, tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos.

por trás da vidraça

Cá entre nós: fui eu quem sonhou que você sonhou comigo?
Ou teria sido o contrário?
Sonhei que você sonhava comigo. Mais tarde, talvez eu até ficasse confuso, sem saber ao certo se fui eu mesmo quem sonhou que você sonhava comigo, ou ao contrário, foi quem sabe você quem sonhou que eu sonhava com você. Não sei o que seria mais provável. Você sabe, nessa história de sonhos — falo o óbvio —, nunca há muita lógica nem coerência. Além disso, ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre isso. Ou não? Sei que o que sei é que, sem nenhuma dúvida:
Sonhei que você sonhava comigo. Certo? Não, talvez não esteja nada certo. Também não era isso o que eu queria ou planejava dizer. Pelo menos, não desse jeito embaçado como uma vidraça durante a chuva. Por favor, apanhe aquele pequeno pedaço de feltro que fica sempre ali, ao lado dos discos. Agora limpe devagar a vidraça — quero dizer, o texto. Vá passando esse pedaço de feltro sobre o vidro, até ficar mais claro o que há por trás. Lago, edifício, montanha, outdoor, qualquer coisa. Certamente molhada, porque só quando chove as vidraças embaçam. Será? Não tenho certeza, mas o que quero dizer, disso estou certo, começa assim:
Sonhei que você sonhava comigo. Agora penso que é também provável que — se realmente fui mesmo eu a sonhar que você sonhou comigo; e não o contrário — eu não estivesse sonhando. Nada de sono, cama, olhos fechados. É possível que eu estivesse de olhos abertos no meio da rua, não na cama; durante o dia, não à noite — quando aconteceu isso que chamo de sonho. Embora saiba que — se foi dessa forma assim, digamos, consciente — então não seria correto chamá-la de sonho, essa imagem que aconteceu —, mas de imaginação ou invento até mesmo delírio, quem sabe alucinação. Mas não, não é isso o que quero contar, O que quero contar, sei muito bem e sem nenhuma hesitação, começa assim:
Sonhei que você sonhava comigo. Parece simples, mas me deixa inquieto. Cá entre nós, é um tanto atrevido supor a mim mesmo capaz de atravessar — mentalmente, dormindo ou acordado — todo esse espaço que nos separa e, de alguma forma que não compreendo, penetrar nessa região onde acontecem os seus sonhos para criar alguma situação onde, no fundo da sua mente, eu passasse a ter alguma espécie de existência. Não, não me atrevo. Então fico ainda mais confuso, porque também não sei se tudo isso não teria sido nem sonho, nem imaginação ou delírio, mas outra viagem chamada desejo. Verdade eu queria muito. Estou piorando as coisas, preciso ser mais claro. Começando de novo, quem sabe, começando agora:
Sonhei que você sonhava comigo. Depois que sonhei que você sonhava comigo, continuei sonhando que você acordava desse sonho de sonhar comigo — e era um sonho bonito, aquele —, está entendendo? Você acordava, eu não. Eu continuava sonhando, mas na continuação do meu sonho você tinha deixado de sonhar comigo. Você estava acordado, tentando adequar a imagem minha do sonho que você tinha acabado de sonhar à outra ou à soma de várias outras, que não sei se posso chamar de real, porque não foram sonhadas. Mas, se foi o contrário, então era eu, e não você, quem tentava essa adequação — nessa continuação de sonho em que ou eu ou você ou nós dois sonhamos um com o outro. Nos víamos? Quase consegui, agora. Preciso simplificar ainda mais, para começar de novo aqui:
Sonhei que você sonhava comigo. Depois, fiquei aflito. E quase certo de que isso não tinha acontecido. O que aconteceu, sim, é que foi você quem sonhou que eu sonhava com você. Mas não posso garantir nada. Sei que estou parado aqui, agora, pensando todas essas coisas. Como se estivesse — eu, não você — acordando um pouco assustado do bonito que foi ter tido aquele sonho em que você sonhava comigo. Tão breve. Mas tudo é muito longo, eu sei. Estou ficando cansativo? Cansado, também. Está bem, eu paro. Apanhe outra vez aquele pedaço de feltro: desembace, desembaço. Choveu demais, esfriou. Mas deve haver algum jeito exato de contar essa história que começa e não sei se termina ou continua assim:
Sonhei que você sonhava comigo. Ou foi o contrário? Seja como for, pouco importa: não me desperte, por favor, não te desperto.

frase do dia

Descobri que o amor dorme, mas não morre.

antes de voce partir

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer
atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia
destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

tempestade

Eu mastigava com culpa cinco daquelas bolinhas de amendoim. Não era culpa, era ansiedade. Não, era tédio. Minhas amigas conversavam longamente sobre algo que não me interessava nem por um segundo. As chatices do marido, as chatices do trabalho, as chatices do trânsito. Minha vida não é chata. Desde muito novinha decidi que minha vida não seria chata. Eu inventaria um trabalho, uma casa, um dia, um modo, um jeito. E inventei. As festas na Carol sempre tinham comidas incríveis mas, naquele dia, eram só bebidas. Eu não bebo. Quer dizer, agora, de vez em quando, comecei a beber só porque entendi quando me falavam que sem álcool é tudo muito pior. Então passei a beber pouco.Uma taça de vinho? Mas naquele dia eu não podia beber porque não tinha comido e também porque não estava a fim. Eu estava a fim de ir embora. Voltar pra minha vida que não era chata mas ficava chata quando percebia que eu tinha uma vida dentre todas aquelas vidas que se faziam perceber. Olhei pra porta. Ela abriu e você chegou. Eu não te via há 3 meses e alguns dias. Foi então que o narrador do meu cérebro pigarreou e mudou o tom. Eu me narro tudo desde que me tenho por cérebro. Como se o tempo todo eu me contasse e contasse o mundo. Para ver se eu existo e se o mundo existe. Para ver se eu me suporto e se suporto o mundo e se o mundo me suporta. É insuportável, mas o tempo todo minha cabeça narra tudo. Minuciosamente, detalhadamente, dolorosamente. O tempo todo eu cavoco o segundo, o pó, a pele, o que se diz, o que se parece. Tentando narrar o mais profundo do profundo do que eu poderia narrar. Só pra responder o mais profundo do profundo do que eu poderia perguntar. Então o narrador começou dizendo assim "e então ele entrou por aquela porta". Você entrou por aquela porta. Eu apertei o braço da Fernanda: "é ele! Ai, meu Deus, é ele". Quem, Tati? Ele. Mas qual dos "eles"? Você tem tantos "eles", Tati. O último. Você era o último homem que eu tinha amado e, portanto, o "ele" da vez. Com seu cabelo alto, largo, rococó. Eu amo seu cabelo.
Amo os cachos mais brancos que parecem ornamentos rococós para suas orelhas. Os puxa-sacos te abraçam. Eu percebo quem gosta de você e quem só te abraça porque um dia pode precisar de emprego. Alguns te abraçam gostando de você. E então eu fico feliz, porque eu gosto que gostem de você. Porque você é o tio da Lia, a bebezinha que pensa muito antes de rir pra qualquer bobagem. Você é o cara que, quando foi embora, me deixou sentindo uma dor bem enorme, mas eu gosto de você, você não fez por mal. Seu mal nunca foi por mal. Então, eu gosto que gostem de você. E o narrador me narra seus tênis sempre tão publicitários. Seus pés gordinhos e pequenos e tão perfeitos pra carinhos. E narra sua roupa de chefe descolado. E narra o segundo em que você me percebe na festa e cochicha no ouvido do seu amigo alto. E narra todas as infinitas vezes em que você passou por trás de mim, esperando que eu me virasse e concordasse com seu "oi" cordial. Preferindo que eu não me virasse, assim você podia não sentir essas coisas complicadas todas que sentimos juntos. Então, cansada de te narrar, chamei firme seu nome, com um sorriso maduro. Mordendo a língua que tremia batendo no céu da boca. Minha língua, quando te vê, quer logo te dizer coisas lindas e assustadoras. Então é uma luta prendê-la no céu, deixando na terra apenas meu cordial "oi" que você queria sem querer. Então fomos pegar água. Brindamos com a água. Você com sua mania de conversar quase dentro da minha cara. Eu vesga de te ver tão perto. Seu charme míope e inseguro. O menino inseguro que conversa colado na minha retina. Que insegurança é essa? Eu não te pergunto nada, apenas desejo tanto você que sorrio como se não me importasse com sua existência. Mas você resolve se explicar mesmo assim. Porque "seus olhos estão sempre me perguntando algo", você diz. E você começa sua loucura que me faz gostar ainda mais de você. Empurra a palma contra o peito e diz "eu gosto assim, Tati, fechado, protegido, eu gosto".
Então você olha para o meu copo d'água e diz: "eu sou só um copo d'água, mas você ficava me olhando e pensando nas bolhas e nos gelos e nos canudinhos e na transparência e se a água era isso ou aquilo. Água é só água, por que você complica a água, Tati?". Então apagaram a luz e eu quis me esconder dentro do seu paletozinho de publicitário descolado e ouvir suas batidas descompassadas e embaladas pelo seu cheiro de alma boa. Mas você pegou na minha mão e continuou dizendo que uma mão, muitas vezes, é apenas uma mão. Mas que eu insistia em enxergar os buracos entre os dedos, os anéis que separavam os dedos, a dor da separação dos dedos, a gota da bebida gelada entre os dedos. E que você não poderia suportar isso. A maneira como eu te olhava. Vendo mais, inventando mais, complicando mais. E eu quis te dizer que tudo bem, eu seria uma menina simples. Eu mataria meu narrador, minhas possibilidades, meus mundos, minhas invenções. Só de ver seus cachos mais grisalhos e rococós ornando seus medos e superficialidades eu desejei não ser mais eu pra ser qualquer coisa que pudesse ser sua. Mas enchi meu peito surrado e murcho de coragem e te disse que, infelizmente, onde você era apenas um copo d' água eu era a tempestade.

muito bom

Chora não, menina boba. Era só um garotinho igual aos 345 que têm nas lojas. Que modelo você quer agora? Quer o modelo que fala irado, o que fala maior vibe ou o que fala insano? Ah, mãe, queria um que falasse coisas mais inteligentes e profundas, tem desse? Tem, mas custa um pouco mais caro porque é importado de outro planeta. Nada que dez vezes no cartão não resolva.

frase do dia

E lá vou eu, nas minhas tentativas, às vezes meio cega, às vezes meio burras, tentar acertar os passos .

domingo, 3 de julho de 2011

frase do dia

E o que importa você sabe, menina. É o quão isso te faz sorrir. E só.

bruno

A primeira coisa que notou quando passeou os olhos pela sala de aula foram uns cabelos louros, presos a um corpo que, no primeiro momento, não chegou a se definir. Pareciam soltos no ar, tomados de vida própria, desligados de qualquer cabeça. Só um pouco mais tarde, raciocinando vagamente que aqueles cabelos deveriam pertencer a alguém, complementar um par de olhos, um nariz, uma boca, duas mãos e todas essas coisas — só depois de chegar a esse pensamento foi que Maurício voltou-se devagar, outra vez, para ver melhor.
E teve medo da decepção. Aqueles cabelos louros e bonitos mereciam também um corpo louro e bonito. A voz do professor cortou no meio o ato de voltar-se. Deslizou os olhos pelos outros cabelos que se ofereciam, sem mistérios, mas logo aborreceu-se. Não tinham a vida — era vida? — daqueles outros, dos louros. Espiou pela janela, para o verde das árvores da Redenção. Estavam imóveis no meio da vaga bruma. O globo terrestre girava com o movimento dos dedos do professor, misturando continentes, oceanos e ilhas numa só massa azulada. Dava um pouco de sono.
Na ponta dos dedos, a caneta tomou vida própria e começou a escrever frases sem sentido. Olhou o relógio, cinco minutos para bater. O corpo do professor, bem à sua frente, obrigava-o a afetar um olhar interessado, acompanhando com movimento de cabeça as frases que ele dizia. Sacudiu a caneta, um borrão de tinta espalhou-se sobre as frases recém-escritas. O professor fez uma pausa. As gotas de tinta atingiram os dedos de Maurício, escorreram para a mesa, para o chão. No meio da pausa, o professor olhou-o interrogativo, esperando decerto que levantasse e fosse lavar as mãos. Teve vontade de não se mexer, como se não tivesse acontecido nada. Mas os colegas aguardavam em silêncio, o globo ainda girava, o professor tinha um gesto suspenso no meio, a tinta espalhava-se lenta. Levantou, pediu licença e caminhou até a pia no canto. Enquanto andava, sentia a sala dilatar-se,
aliviada, às suas costas. Abriu a torneira, a água escorreu pelos pulsos, pela palma, pelos dedos, levando a tinta. Com movimentos cuidadosos, arrancou a toalha de papel, secou as mãos lentamente. O olhar dos outros queimava suas costas. De agora em diante, até aprenderem seu nome, seria conhecido como aquele-que-lavou-as-mãos-na-aula-de-geografia. “Ele está me vendo”, pensou de repente. E voltou-se, procurando os cabelos louros.
No fundo da sala, encontrou um par de olhos claros que o observavam com interesse. Voltou até seu lugar, sentou-se. E recompôs então o rosto que vira, inclinado de leve, o queixo pousado no côncavo da mão direita. “Não tenho nenhum amigo”, pensou sem sentido. Ou só percebeu o sentido um pouco depois. Até lá, desfilaram por sua cabeça todas as coisas que eram, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de não ter nenhum amigo — não conhecia ninguém, viera do interior e ia para casa de bonde. Não havia nenhuma relação entre não ter amigos e andar de bonde, mas continuou a enumerar razões, batendo com o dedo no tampo da mesa. Como cinco minutos custavam a passar, meu Deus. Repetiu baixinho “Meu Deus”, sem exclamação. De súbito resolveu prestar atenção nas palavras do professor, mas só começou a ouvi-las no momento exato em que o homem colocava o livro dentro da pasta e dizia: “Bem, com isso então encerramos o assunto de hoje.” Houve uma pausa que Maurício não saberia dizer se de alívio ou cansaço. Logo depois o barulho da Campainha espatifou o silêncio, fazendo entrechocarem-se no ar o ruído de fechos cerrando, livros sendo guardados, palavras se desencontrando. Propositalmente, demorou um pouco mais. Os alunos que já se conheciam passavam em grupos, vagamente arrogantes, enquanto os novos como ele dividiam-se em duas categorias — a dos que se esquivavam, como se realmente não quisessem ser conhecidos, e a dos que sorriam com timidez, tentando uma aproximação humilde. Até agora, Maurício colocara-se entre os primeiros, mas começou a retardar os movimentos, sorrindo difícil. Logo a sala ficou totalmente vazia.
Foi então que o rapazinho louro mexeu-se em direção à porta de saída. Maurício acompanhou-o hesitante. Na escada emparelhou com ele. Sorriu. O menino sorriu também. Maurício resolveu ser o primeiro a falar:
— Chata a aula de geografia, não?
O outro entortou a cabeça:
— Você acha? É uma das minhas matérias preferidas.
Às primeiras palavras Maurício descobriu um sabor de coisa já vivida. Não conseguiu precisar o que era. Apressou-se a explicar:
— Eu também gosto. Mas é que é a última aula, a gente já está cansado. — Ah, bom. Eu também estava cansado, sabe?
Maurício lembrou: aquela maneira de falar, chiando levemente nos “esses”, puxando forte nos “erres”. Lembrou de Maria Lúcia.
— Tu és carioca?
— Sou. Como é que você sabe?
— Está na cara — disse. Depois emendou, numa tentativa de brincadeira: — Ou melhor, está na voz. Tenho uma prima que é de lá do Rio e fala do mesmo jeito.
O menino sorriu. Sorria muito, mas falava pouco e baixo. A escadaria chegou ao fim, a porta aberta expeliu-os para a rua onde o movimento de fim de tarde ficava mais intenso.
— Eu também não sou daqui — explicou Maurício. — Sou do interior. Viemos faz pouco tempo de lá, não conheço ninguém.
— Eu também não conheço ninguém. Só você agora.
Sorriram um para o outro. A solidão e a timidez unindo-os com suavidade. Começaram a caminhar.
— Vou tomar o bonde — disse Maurício. — Tu vais a pé mesmo?
— Vou. — O menino hesitava um pouco, sacudindo a pasta, o olhar fixo nos sapatos. — Moro aqui perto.
— Ah, que pena. Senão a gente ia junto.
O menino estendeu a mão:
— O meu nome é Bruno.
— O meu é Maurício.
Apertaram as mãos. Tornaram a sorrir, embaraçados. Maurício queria dizer alguma coisa, mas a cabeça estava vazia. Deu alguns passos em direção a um bonde que se aproximava.
— Bom, vou indo. Amanhã a gente se encontra na aula. Até logo.
Começou a caminhar. A voz do outro o deteve:
— Maurício!
Voltou-se rápido:
— O quê?
— Ao meu lado tem uma carteira vazia, se você quiser pode sentar lá amanhã. Bruno hesitou, gaguejou ruborizado:
— Eu gostaria muito.
Subindo no bonde, Maurício gritou:
— Quero sim. Claro que eu quero.
Antes do bonde dobrar a curva, olhando para trás, ainda conseguiu ver mais uma vez aqueles cabelos louros.
— Boa tarde. O Bruno está?
— Está, sim. Entre, Maurício.
Embaraçado, apertou a mão que a mulher estendia. Sentia-se intimidado, talvez pelo vestido preto justo que ela usava, pelo colar de pérolas um tanto despropositado àquela hora da tarde.
— Como vai a senhora, dona Cristina?
—Vou indo — ela disse. E acendeu um cigarro.
— Bruno melhorou?
Ela sorriu levemente, sem responder. Em sua presença, Maurício ficava tomado por uma mistura de respeito, fascinação e antipatia. A mulher sempre de saltos altos, cabelos bem penteados, sorriso agradável e palavras exatas fazia-o pensar na própria mãe. Isso lhe dava um sentimento de inferioridade, porque revia os olhos baixos da mãe, com seu interminável tricô de Penélope. Os próprios móveis da casa eram diferentes. Piano de cauda, vasos de cristal, cortinas de renda branca.
— É justamente sobre isso que quero falar com você — ela disse de repente. Maurício surpreendeu-se:
— Sobre o quê, dona Cristina?
— Sobre a doença de Bruno.
Ela também era loura, e o jeito de falar, baixo e triste, o mesmo de Bruno. Só as mãos eram diferentes. As de Bruno, quietas, moviam-se apenas para segurar o cansaço do rosto. As de dona Cristina alisavam nervosas o vestido, subiam pelo busto, consertavam uma mecha de cabelo fora do lugar, às vezes torciam-se como se estivessem desesperadas. Maurício pensava nas mãos de um afogado, afundando aos poucos, só elas ainda à tona, pedindo ajuda. Mãos de um afogado que não se afogava nunca. Acomodou-se melhor na cadeira forrada de veludo vermelho. Sentia-se sujo, grosseiro e vulgar.
— Você sabe, Bruno é um garoto muito sensível — ela disse. As mãos enrugaram uma prega do vestido. — Como você também é. Pois foi essa sensibilidade excessiva que causou a doença. Na verdade, ele não está doente. Não no corpo, compreende? Está é fugindo de alguma coisa, e para não enfrentá-la inventa pretextos para ficar o dia todo na cama.
Maurício concordou com a cabeça. Apertou nas mãos o livro que trazia para devolver a Bruno — Viagem ao centro da Terra, Júlio Verne. Não sabia onde dona Cristina queria chegar.
— Você é inteligente — ela disse. Mas Maurício não teve tempo de sentir-se lisonjeado, pois as mãos subiam até o colar de pérolas, enrolando-se como cobra nos dedos esguios, prendendo toda a sua atenção. — Você sabe que é o único amigo de Bruno. E sabe também que a gente precisa ter muito cuidado sempre para não magoá-lo. É um verdadeiro cristal, ameaça quebrar-se com qualquer toque menos delicado. — As palavras nasceram em rajadas, sem pausa. Depois cessaram, como se a fonte que as gerava tivesse estancado. — Agora ele está entrando numa idade difícil. Você também. Todo cuidado é pouco, compreende?
— E o que é que a senhora quer que eu faça? — Maurício quis colocar um tom mais rude na voz, mas ela saiu tímida, hesitante, assustada.
Dona Cristina falou ainda mais baixo, mais triste, um pouco rouca: — Nada, não quero que você faça nada. Só quero que você continue amigo dele. Você é muito importante para ele. — Ficou de cabeça baixa
durante alguns instantes, depois tornou a erguêla e sorriu. Levantou-se, passou as mãos pelos cabelos dele. — Venha, Bruno vai gostar de vê-lo.
Enveredou em direção ao interior da casa. Maurício seguiu-a automático, meio estonteado. Ela caminhava à sua frente, a cada passo o vestido de tecido leve subia um pouco, mostrando um palmo da coxa muito branca. Teve vontade de voltar atrás, fugir dali. Não conseguiu. Parada à porta do quarto, dona Cristina sorria. Seu sorriso era um anzol que o fisgava lentamente. Desviou-se dela e entrou, o rosto ardendo.
Do fundo da cama, Bruno olhou-o. E sorriu, como sempre. No primeiro instante, foi só o que Maurício pôde ver: o brilho dos olhos e dos dentes. Sem saber o que dizer, sentou-se perto dele, estendeu o livro.
— Trouxe teu livro, já li. Gostei muito.
Falava aos arrancos, sentindo-se idiota. Deveria perguntar como o outro estava, se se sentia melhor, coisas assim.
Bruno apanhou o livro. Folheou-o devagar, um sorriso estranho no canto dos lábios. Leu:
— Viagem ao centro da Terra... seria bom se a gente pudesse fazer uma viagem dessas, hein, Maurício? Para o centro da Terra, onde ninguém pudesse ver a gente.
Maurício desviou o olhar para a porta, em pânico. Seus olhos esbarraram na madeira, dona Cristina havia ido embora e fechado a porta. Sentia-se desamparado como se o tivessem deixado a sós com um animal estranho, ou uma mistura química de reações imprevisíveis. Sacudiu a cabeça, lutando contra a imagem. “Bruno é meu amigo”, pensou com força, “Bruno é meu amigo”.
O sentimento dissipou-se. Apertou os olhos, descerrou os maxilares e viu que Bruno chorava silenciosamente. As lagrimas escorriam, o livro tremia nas mãos quase tão brancas quanto o lençol. Subitamente, teve vontade de fazer o amigo encostar a cabeça em seu peito, enxugar-lhe as lágrimas. — Bruno, Bruno, o que é que tu tens? Eu não entendo o que está acontecendo contigo.
— Ninguém entende.
— Não gosto de te ver assim. Fico triste também.
A ternura inexperiente não conseguia expressar-se em palavras ou gestos. Mas seu olhar estava repleto de doçura, suas mãos pesadas de amizade, sua garganta quase estalava com as palavras avolumadas e presas, sem encontrar a saída. Como uma câmara de cinema, seu olhar deslizava pelas paredes, perseguindo imagens. Os livros encadernados na estante giravam lentos por trás das cortinas que o vento soprava. Sobre a escrivaninha, o globo terrestre igual ao da aula de geografia parecia também girar lentamente — terras distantes, palmeiras, camelos, dançarinas tibetanas, serpentes mortais, pirâmides, altos edifícios, despenhadeiros, paisagens de cartão-postal, picos cobertos de neve, tudo contido numa esfera, o mundo que girava e girava no canto do quarto.
— Por que é tudo tão sujo? — A voz de Bruno vinha de longe. — Por que é tudo tão imundo e tão difícil, Maurício?
Num gesto não planejado, ele estendeu a mão e começou a passá-la nos cabelos do outro.
— Não sei, não posso te dizer. Se eu soubesse, acho que não estaria aqui a essa hora. Estaria no céu, seria santo. Ou no inferno, sei lá. Em qualquer lugar, menos aqui.
De repente sentia uma espécie de segurança, o que ia dizendo parecia ter uma experiência que não conhecia em si próprio. Como se fosse anos e anos mais velho que Bruno, como se um pai falasse com o filho.
— É preciso que seja assim, Bruno.
— Mas por quê? Só quero que você me diga por quê.
— Porque sempre foi assim, entende? Sempre.
Mas o que tinha sido e seria sempre assim? As idéias, não as palavras, atropelavam-se em seu cérebro. Havia tantas coisas que ele gostaria de explicar. Apesar das muitas conversas, pouca coisa fora dita. O essencial sempre ficara no fundo, esmagado pela superficialidade. Havia os silêncios longos, quando se olhavam, um no outro, no fundo dos olhos, havia a enorme diferença entre eles e os demais. Havia uma vontade estranha e carinhosa de tocar entre os dois, sem nome. Por isso calava e, devagar, passava a mão pelos cabelos do amigo.
Ficaram muito tempo quietos assim. Nem voz nem gesto expressariam o que sentiam. Finalmente, com esforço, Maurício falou:
— Sabe, quando a gente está com medo de entrar num quarto escuro, a melhor coisa a fazer é entrar de repente, sem pensar. Não adianta nada ficar do lado de fora, vendo fantasmas, imaginando coisas que não existem. Melhor entrar de uma vez, Bruno.
O silêncio voltou. Bruno olhava pela janela. Maurício apertava a mão dele sem dizer nada. Os raios de sol encolhiam aos poucos no tapete. Os objetos iam perdendo seus contornos naturais para ganhar outros, sugeridos pela imaginação. “Eu tenho medo, Maurício, eu tenho muito medo”, Bruno parecia dizer em silêncio. E era como se ele mesmo também dissesse, mudo: “Eu tenho medo, Bruno, eu tenho muito medo.” Na penumbra, os olhos do amigo brilhavam. Lá fora, na calçada, crianças brincavam de roda: “Da laranja quero um gomo, do limão quero um pedaço, da tua boca quero um beijo, dos teus braços um abraço.” De dentro da casa vinha um rumor de pratos, copos, talheres. A mão de Bruno estava fria e por vezes, num susto, Maurício prestava atenção na respiração dele.
Então, de repente, a porta abriu. Acenderam a luz. Dona Cristina entrou, de braço dado com o marido. E o pai de Bruno, Maurício viu outra vez, era também um pai completamente diferente do seu. De terno e gravata, cabelos bem cortados e um vago perfume de água de colônia.
— Ué, vocês estão no escuro?
Bruscamente, Maurício retirou a mão. Como se fosse proibido. Levantou-se, falou apressado:
— Eu já ia andando.
O pai de Bruno sorriu para ele. Não usava bigode, a cara raspada e lisa parecia muito jovem. Convidou:
— Não quer ficar para jantar conosco?
— Não posso, não avisei em casa.
— É só telefonar.
— A gente não tem telefone — disse com dificuldade. — Muito obrigado. Dona Cristina avançou para o filho. Sentou na beira da cama e
começou a acariciá-lo, falando em voz baixa, como se fosse um bebê. Perturbado, Maurício desviou os olhos.
— Eu já ia andando mesmo — repetiu. Caminhou até Bruno e apertou-lhe a mão. — Até logo. Espero que tu melhores.
— Apareça sempre — disse o pai. — E traga alguma coisa sua pra gente ler. Bruno disse que você escreve muito bem.
A empregada acompanhou-o até a porta. Com alívio e as orelhas ardendo, saiu. Começou a caminhar. De repente lembrou da primeira vez que tinham se encontrado, ele e Bruno. A noite estava caindo também, e também tinham acontecido aqueles mesmos vácuos de silêncio. Desviou-se das meninas que brincavam de roda. Vistas de perto eram feias, magras, desafinadas, sem graça. “Por que é tudo tão imundo e tão difícil, Maurício? Hein, Mauricio, me diz, por quê?” Sacudiu os ombros como para livrar-se da resposta. Mas havia os silêncios. E as vontades estranhas, carinhosas, sem nome, proibidas.
Maurício parou na beira da calçada, olhou para a janela de onde vinha uma luz baça, filtrada pelas cortinas. Atrás delas, deitado numa cama, um rapazinho de cabelos louros e olhos azuis assustados repetia aquela frase que encontrava eco dentro dele: “Eu tenho medo, Maurício, eu tenho muito medo.”
Ficou parado no cais enquanto o navio se afastava, lento.
Quando não conseguia mais enxergar a figura de Bruno, perdida entre as dos outros passageiros, começou a andar em direção ao centro da cidade. No meio do caminho, voltou-se. Acenou outra vez, como se ainda pudesse ser visto. Riu do próprio gesto, passou a mão na face, no lugar onde dona Cristina o beijara. Vergonha e orgulho, misturados com rubor. Caminhava tão devagar que as pessoas esbarravam nele sem se desculparem, como se tivessem acumulado muita energia durante o embarque dos parentes e precisassem agora descarregá-la. Voltou-se outra vez para olhar o navio. Era difícil imaginar que Bruno estivesse lá dentro, confinado naquele limite branco e estreito que cada vez se diluía mais no horizonte, entre as ilhas do Guaíba.
Mas não estava triste. Era como se de repente tivesse percebido que vivia, e que aquilo nada mais era do que um capítulo, uma etapa. Enfiou as mãos nos bolsos, teve vontade de cantar. Uma canção qualquer, mas calou. A voz sairia fina ou grossa? Talvez aquela ridícula mistura dos tons, com súbitas quebras. “Como sou ridículo, como sou ridículo”, pensou, com nítida consciência de seu rosto cheio de espinhas, das mãos grandes demais, do buço cerrando, os gestos desajeitados como os de uma marionete de cordões arrebentados. Um homem empurrando um carrinho de pipocas passou por ele. Pensou em chamá-lo, desejo súbito fazendo cócegas na boca. A voz o deteve: como sairia? Na hora de responder à chamada, na escola, era horrível. Nos últimos tempos Bruno respondia por ele. Agora Bruno se fora, não era amigo de mais ninguém e todos os outros ririam dele. Como sou mesquinho, pensou: é só por isso que lembro de Bruno? Sacudiu os ombros, perdoando- se. Dia a dia ia se acostumando com suas pequenas mesquinharias.
Começou a descer as escadas. Embaixo, voltou-se para ver a mulher que vinha atrás. Assim, de baixo para cima, podia ver as coxas roliças reveladas pelos passos largos. Um desejo súbito atravessou seu corpo. Fechou os olhos, apertou os punhos, cerrou os dentes. Era a essa espécie de sujeira que Bruno se referia? Os sentidos desenfreados que galopavam pela cabeça, à noite, as ardências, o sexo duro apertado contra os lençóis que amanheciam molhados. Lembrou dos desenhos nos livros de anatomia, examinados na biblioteca do colégio, das palavras desconhecidas nos dicionários, os livrinhos pornográficos passados de mão em mão nas aulas monótonas. Lembrou das horas em que se trancava no banheiro ou no próprio quarto, sem resistir àquela onda morna que inchava, lembrou e mordeu os lábios, tentando olhar para fora.
O crepúsculo vítreo da primavera não ajudava. Havia cheiros no ar, vento morno espalhando pólen. A cabeça estalava, as espinhas ardiam — e no entanto dona Cristina as beijara sem repugnância. “Será que ainda tenho salvação?”, perguntou-se, estacando à frente da estátua no meio da praça. A figura de pedra erguia no ar a espada, triunfante. Maurício riu: “É fácil erguer uma espada com tanta convicção quando se é de pedra, assim.”
Sentou num banco. Os canteiros estavam cheios de flores, havia roxuras intensas na copa dos ipês. Dava uma moleza no corpo e aquela vontade de fazer — fazer o quê? Não sabia, então recostava o corpo no banco, à espera de uma resposta. Que não vinha. Espalmou as mãos sobre as coxas, observou os vagos contornos das veias se ramificando sob a pele. E havia os pêlos, recentes, leves, começando a adensar-se. Crispou as mãos com ódio: impossível esquecer do próprio corpo, que a cada dia se impunha com mais violência. A cada dia exigia mais atenções, expandia-se feito gota de tinta sobre uma folha de jornal. Não conseguia esquecer, por um minuto, da existência do corpo.
E aquele ódio surdo, contra tudo e todos. Aquele ódio às vezes recolhido por dentro, como um animal selvagem, trancado no quarto o dia inteiro, sem fazer nada, sem pensar nada, concentrado em odiar um ódio puro, que se acumulava sem encontrar um objeto onde pudesse descarregar-se. Apertou a perna por cima do tecido das calças, até as unhas ferirem a pele. Ah, e aquela vontade de magoar a si mesmo, ele, que magoava tanto os outros. A vontade de destruir-se para provar que se pertencia, que aquela caixa com dois braços e duas pernas era o seu corpo e
poderia fazer dele o que bem entendesse. Mas prova a quem, e para quê? Ah, era o desejo de chorar baixinho e de ri feito louco, e por trás de tudo isso era o desejo nem de um nem de outro, apenas o desejo. Era o desejo. Levantou do banco.
“Não virá”, pensou sem querer. E surpreendeu-se, não esperava ninguém. Ninguém viria. Talvez um dia, quem sabe. Alguém, algum dia. “Não virá”, repetiu. Depois pensou em Bruno, que se afastava, levado pelo navio. Parecia que tudo aquilo tinha acontecido há muito tempo, que não houvera solução nem resposta para nada. Ninguém, nada, nunca. As palavras presentes em todas as frases, com uma fatalidade um tanto cômica. Então, de repente, sem pretender, respirou fundo e pensou que era bom viver. Mesmo que as partidas doessem, e que a cada dia fosse necessário adotar uma nova maneira de agir e de pensar, descobrindo-a inútil no dia seguinte — mesmo assim era bom viver. Não era fácil, nem agradável. Mas ainda assim era bom. Tinha quase certeza.